O Lagar dos Dados
A pandemia acelerou um processo que estava em curso já há alguns anos e despoletou globalmente a segunda vaga da digitalização. Uma vaga em que as tecnologias e as redes continuam a ser importantes, mas em que tudo começa no acesso aos dados e termina no conhecimento, nos serviços, nos produtos e nas soluções que a partir deles são desenhados.
Os dados são o ouro, ou o petróleo do novo tempo. Um ouro e um petróleo cuja fonte são as pessoas, com a sua imaginação, com as suas escolhas e com as suas partilhas. Não é de estranhar por isso que o debate sobre a quem pertencem os dados, como podem ser disponibilizados ou consentido o seu uso e para que devem ser usados prioritariamente,atravesse todas as sociedades e esteja no centro de grandes fricções e mesmo fraturasentre potencias e visões de sociedade.
Nos Estados totalitários e mesmo nalguns estados democráticos, mas com um controlo totalitário dos dados pessoais, de que a Índia é o mais conhecido exemplo, o debate na sociedade é sistémico. Há quem defenda a estratégia do governo de fazer uma gestão global da relação Estado - cidadão através da captura pelas autoridades dos dados pessoais necessários a esse processo e quem a ele se oponha, com mais ou menos visibilidade e risco, conforme se movimenta numa democracia iliberal ou num sistema autocrático.
Na União Europeia, uma democracia aberta, está neste momento em curso um profundo debate sobre a estratégia para os dados. A União não pode perder a corrida para estar na crista da segunda vaga da digitalização, mas também não o pode fazer a qualquer preço. Os direitos de proteção dos dados e de privacidade têm que ser respeitados. A digitalização tem que ser transparente, democrática e ter um propósito benéfico para a sociedade, como titula a Declaração de Lisboa, ainda em conceção e que deverá ser assinada na Assembleia Digital a decorrer em Lisboa nos primeiros dias de junho deste ano.
Neste contexto, e numa linguagem simples, tenho proposto um contrato de cidadania em que o consentimento dos cidadãos ao uso de dados de interesse geral para a investigação, para o planeamento e para o desenvolvimento, seja compensado com a disponibilização de cada vez melhor acesso às redes a preços acessíveis, melhores qualificações e melhores serviços e bens públicos.
Lembrando uma analogia de outros tempos, é como se nalguns países toda a azeitona fosse do Estado, noutros de quem a compra ou troca em operações mais ou menos claras, e na Europa de cada um de nós, com a obrigação moral de não a deixar apodrecer, levá-la a um lagar adequado e receber o azeite a que temos direito.