Fragmentação
Houve um tempo em que era fácil distinguir entre partidos de projeto e movimentos de causas, os quais por vezes também se constituíam como forças políticas institucionais para poderem aceder aos patamares da representação democrática. Refleti várias vezes neste espaço sobre como uma boa combinação das duas dinâmicas me parecia saudável para a democracia.
Esse exercício hoje é cada vez mais complexo. As ferramentas tecnológicas e as redes sociais têm conduzido a uma fragmentação que ameaça estilhaçar no seu cerne mesmo os mais sólidos partidos, muitos deles já só colados pela dinâmica dos mecanismos de acesso ou conservação do poder.
As coisas são como são. Nunca fui saudosista e procuro não enterrar a cabeça na areia. Se é este o novo normal é nele que temos que fazer acontecer. Mas não nos iludamos. Se relativizarmos os valores agregadores, as mundividências ou o sentido de pertença a um projeto de sociedade representado por uma ou mais forças políticas num espectro compatível, e fomentarmos as diversas formas de tribalismo, mais ou menos benevolentes, estaremos a abrir frestas por onde os inimigos da democracia se continuarão a infiltrar com o objetivo primeiro de a fazer implodir.
Por outro lado, se se forem esvaziando os partidos de projeto com a migração para os movimentos de causas, enfraquece-se a capacidade de afirmação das narrativas políticas que em última análise estruturam as alternativas de governação num regime representativo. Em consequência, como tem sucedido em países alguns paísesdemocráticos, mesmo nos de maior tradição e maturidade, cria-se pasto para a emergência de caudilhos populistas que se afirmam não por ideias próprias, mas contra a confusão gerada pela profusão de propostas no campo democrático.
Os que prezamos a democracia temos que estar atentos aos perigos da fragmentação. Não atribuo culpas nem distingo bons e maus modelos de militância. Os partidos de projeto têm que saber abraçar as causas numa linha compatível com a sua matriz de princípios, e a defesa de muitas causas específicas em movimentos focados não deve ser incompatível com a participação ativa em projetos políticos mais vastos.
A fragmentação é fruto da liberdade de expressão aditivada pelos novos meios de comunicação. Tentar estancá-la freando a liberdade não é caminho. Mais promissor será usar também essa liberdade para criar comunidades mais fortes e resilientes, que transformem a diversidade na força transformadora positiva que já foi e tem que continuar a ser.