Mundo Livre
Podia apenas ser um dia normal e com uma agenda cheia, mas não era. Quinta-Feira, 24 de março, saí como habitualmente cedo do meu apartamento em Bruxelas, atravessei o frondoso e nesse dia solarengo Parque do Cinquentenário, desci parcialmente a Avenida Belliard, atravessei mais um pequeno parque e 20 minutos depois estava no meu gabinete no Parlamento Europeu onde me esperava mais um longo dia de reuniões, audiências e negociações que deveria culminar, como culminou, já noite dentro, com a participação na reunião final tripartida (Parlamento, Conselho, Comissão) onde foi fechado o acordo provisório sobre o Regulamento dos Mercados Digitais, em que fui relator da Comissão Parlamentar de Indústria, Investigação e Energia.
Podia ser um dia normal e para mim teria sido, não tivesse a consciência que nesse dia na mesma cidade decorria a Cimeira da Nato, a reunião do G7 (Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, Canada, Itália e Japão) e o inicio do Conselho Europeu, tornando-a não apenas na capital administrativa da UE, mas também na capital política do mundo livre.
É sempre um risco simplificar o que é complexo por natureza, mas estamos a viver em pleno século XXI uma luta brutal de titãs entre a ordem liberal e a ordem imperial, a primeira emergindo dos indivíduos para as representações institucionais e a segunda partindo das elites autoproclamadas para a afirmação de uma identidade superior e auto -justificativa. Esta narrativa bipolar, que também pode ser esboçada como sendo entre democracia e ditadura ou entre liberdade responsável e autoridade imposta, está longe de se poder consolidar como uma alternativa explicativa similar por exemplo à que caracterizou a fratura geopolítica subjacente à guerra fria ou de se estruturar como o alicerce de um novo muro.
Basta para isso vermos o magma que ferve nos Estados Unidos, onde os fantasmas imperialistas de Trump e dos seus seguidores continuam a fumegar e a desafiar a pulsão imperialista da grande nação americana, ou sentir a dança geopolítica da China, procurando sair deste conflito como uma ponte inevitável entre dois mundos frágeis e opostos.
Neste contexto, a União Europeia pela perceção de unidade associada ao fulgor e à força do seu mercado e à validade indiscutível dos seus valores humanistas, tem vindo a assumir um papel importante na arbitragem de uma desordem mundial que se desenvolve na fronteira de uma guerra mundial de contornos indecifráveis. Bruxelas foi a capital do mundo livre por um dia e isso não aconteceu por acaso.