Bons e Maus
Quis a volatilidade da agenda que a realização em Lisboa de mais uma cimeira global do empreendedorismo tecnológico (Web Summit 2021) e em Glasgow da conferência global do clima (COP 26) tivesse coincidido com as datas em que liderei uma Delegação da Assembleia Parlamentar Paritária África, Caraíbas e Pacífico / União Europeia que visitou Cabo Delgado, Moçambique, para avaliar no terreno a situação decorrente da insurgência radical que ali se tem desenvolvido os últimos anos, o impacto das medidas de cooperação já tomadas e as prioridades de ação para o futuro.
O contraste entre os 3 cenários, um em que estive em carne e osso e dois que acompanhei através dos media, não podia ser maior. Em Lisboa, a criatividade e o espírito de inovação prometeram novas soluções para tornar a vida de todos mais fácil, interligada e bem-sucedida. Em Glasgow, o direito ao futuro das novas gerações chocou de frente com a resistência de muitos interesses instalados. Nos campos de deslocados de Cabo Delgado a luta diária pelos mínimos de subsistência deixa pouco espaço à esperança e à vida digna a que todos têm direito.
Regressado da visita aos campos de Metuge onde subsistem 150 000 dos 800 000 deslocados pela violência e a intolerância, 114 000 dos quais crianças, tive oportunidade de dizer nesse mesmo dia, numa breve alocução na Embaixada da União Europeia em Maputo, que o pó que ainda me cobria os sapatos e se embrenhava na roupa era efémero, mas a memória das súplicas dos deslocados com que falei perdurariam na minha memória, e na memória de todos os que me acompanharam, enquanto não for possível criar as condições de segurança, apoio humanitário e suporte à reconstrução, que lhes permitam voltar às suas terras e cumprir o sonho de viver em paz e com sentido de futuro.
Numa das muitas reuniões que realizámos durante a missão, com as autoridades, as organizações de apoio e as comunidades, um dos interlocutores falou-nos com emoção da dificuldade cada vez maior em destrinçar globalmente os “bons dos maus” em situações de enorme complexidade, de que o conflito de Cabo Delgado é um exemplo, mas que a luta contra as alterações climáticas ou a rápida aceleração digital também ilustram.
Em todos os casos o que traçará o rumo da história será a dinâmica global e as respostas integradas, mas a diferença imediata emergirá da capacidade de transformarmos o que está diretamente ao nosso alcance. De fazer o bem, para que no cômputo final os bons derrotem os maus e haja menos sofrimento à face da terra.